sábado, 5 de maio de 2012

O Voo Picado do Falcão

Quando escolhi "O Falcão Peregrino" de Glenway Wescott sabia que estava em território conhecido, pois a literatura americana da "Geração Perdida" que viveu em Paris nas décadas de 20 e 30,  está muito presente quer na minha formação quer na minha estante.

Acabada a leitura desta magnífica novela, congratulo-me com a minha escolha, pois o prazer que senti a lê-la foi imenso e espero que se estenda a todos os que a leram.

Foi publicada no início da década de 40, período conturbado na Europa pela II Guerra Mundial, e retrata, através dos olhos de um "eu" narrador americano, uma tarde na vida dos Cullen, casal britânico que representa uma burguesia empobrecida mas, ainda assim, com um estilo de vida glamoroso: ao estilo da Bella Époque. O cenário é Chancellet, França - nos finais dos loucos anos 20, onde era possível encontrar a elite cultural e literária estrangeira.


              

Após a minha leitura, questionei-me se esta seria apenas mais uma história sobre relacionamentos, casamentos e  as  suas vicissitudes, mas uma reflexão mais aprofundada da obra demonstra que Wescott dá-nos uma visão moral e violentamente intrincada do ser humano a partir do olhar consciente de Tower, o alter ego do autor.

Este "eu" vê, reflecte e compreende - não deixando de se sentir intrigado com os acontecimentos daquela tarde. Tower é, não só o "eu" narrador/ alter ego de Wescott, mas também um espectador que nos convida a entrar na sua visão. Assim, somos por ele guiados e tornamo-nos também voyeurs: descobrimos os segredos mais íntimos das personagens.

Tower é um guia introvertido, mas que se vai transformando. E, num tom eloquente e desafiador, admite as suas inseguranças como escritor que duvida da sua percepção. Contudo, as suas observações são omniscientes, as metáforas são cheias de significado e as suas descrições revelam a empatia ou repulsa que sente pelas personagens; arrastando-nos nessa espiral psicológica.

Durante aquela tarde, Tower transforma Lucy, o falcão em vários símbolos: morte, ambição artística frustrada, velhice, ciúme, asceticismo, liberdade ou independência, domesticação e interdependência.

O bater de asas do falcão perto dos olhos do narrador ou a imagem dela por cima da cama do casal enquanto dormem sugere um indicio de morte ou desgraça. O falcão envelhecido, que se deixa morrer porque não é mais capaz de caçar, é talvez a imagem que Tower tem dos homens que se mantêm solteiros. Nas palavras da Sra. Cullen, os falcões mantêm uma relação de estreita dependência com o falcoeiro, pois necessitam de alimento. No entanto, nunca serão domados, manter-se-ão selvagens e com uma vontade única de liberdade. Estas palavras lançam a questão: seremos nós, humanos, como os falcões nas nossas relações amorosas?


                


Sempre que Tower medita nas cada vez mais raras satisfações do casamento, parece estar a andar sobre brasas e deixa-nos com a impressão que está à margem de uma sociedade que ludibria o amor e as relações pessoais, que os considera mais como assuntos manipulativos e de obrigação; e não de paixão e perdão.

A obra acaba com uma antevisão de um casamento tumultuado para Alex e a vida artística frustrada para Tower. Deixa-nos com as questões vitais sobre a vida e o amor: será que temos que renunciar à nossa liberdade para sermos capazes de amar? Conhecemos realmente o objecto dos nossos afectos? Seremos falcões agrilhoados, que se habituam e acomodam a uma relação de dependência ou interdependência? Ou amadurecemos com a vida e simplesmente ficamos conscientes da nossa solidão? 

Apesar do seu subtítulo Uma História de Amor, Tower não nos deixa qualquer resposta, apenas nos deixa espaço para as nossas próprias reflexões.

Não posso acabar sem vos mostrar a música que serviu de banda sonora enquanto lia aquela que é considerada por muitos como a maior novela americana do século XX "O Falcão Peregrino".



                                                          Sidney Bechet "Si tu vois ma mère"

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