quinta-feira, 5 de abril de 2012

O que é retornar-se a um lugar onde nunca se esteve?

Leitura terminada, sinto-me como que saída de uma húmida viagem de machimbombo.
A carroçaria enferrujada pela maresia chiando enquanto me trazia o cheiro de uma terra de pitangas, embondeiros e palaças empalhadas, em paredes que tempos mais tarde ficariam cravejadas das balas de uma revolução que virou de pernas para o ar a vida destes personagens.


Quando cheguei a Portugal, quinze anos volvidos do Abril que mudou esta terra, da Revolução dos Cravos e do período que se lhe seguiu conhecia apenas o «Tanto Mar» que lhe dedicara Chico Buarque e a pergunta que ouviamos repetidamente “Onde estavas no vinte e cinco de Abril?”.
Duas décadas tentando colmatar essa lacuna, uma permanecera: conhecer esta fatia de povo, nem de cá, nem de lá, “gente a quem morreu a terra” - como diz Dulce, ou uma das suas personagens.
Lembrou-me dos anos de escola primária, em que meu professor, com os olhos rasos de água, nos contava que ainda se lembrava de ver as paredes da casa em Angola mutiladas por tiros de bazuca.

Duzentas e sessenta e sete páginas nos abriram uma janela para o ano de viragem na vida do Rui.
O estar num lugar onde se é branco em oposição ao preto, e chegar a outro em que se é retornado em oposição a quem nunca saiu. Um lugar que sabemos que é nosso, mas no qual parece que temos que ganhar novamente espaço. Como é ser “de cá”, quando nunca cá se esteve afinal?

O caleidoscópio montado pela Dulce Maria Cardoso me interessou por nos submergir num grande emaranhado do qual não se propõe nenhuma saída. Vemos cru o abandono daquelas pessoas, a sua inconveniência que apetecia varrer para baixo de um tapete esquecido, o seu desajuste. Tudo isto sem margem para uma visão macro daquilo que aconteceu antes, durante e depois. Assim como nas nossas vidas, nestas que ela nos apresenta também não surge espaço para uma visão distanciada, processada por uma interpretação política ou sociológica.
Os pretos os mandaram embora, os comunas acham que são uns usurpadores sem lugar na nova sociedade em nascimento... Deu maca, cada um acha que a razão está do seu lado, e a vida segue, sem espaço para aspas, com licença, faça favor, vamos ser politicamente corretos. Cambada de mangonheiros.

«A doença da mãe e esta guerra que nos faz ir para a metrópole são assuntos parecidos pelo silêncio que causam.»
Já na página 9 vem o prenúncio da teia em que nos enredamos. Nesta história, realmente, a textura da vivência pessoal de cada um é o que dá a dimensão daquilo que os rodeia. Sentimos na nuca o arrepio da guerra através das pequenas batalhas de cada um. No desmaio do Rui quando o pai é levado, no momento em que ele decide que já não pode esperar seu regresso, nos olhos da D. Glória-que-tem-aqueles-problemas se revirando na fila de espera da refeição dada pelo hotel onde se hospedam na malfadada metrópole.

Temos pormenores reveladores, como o professor de português da turma B queimando os Lusíadas como símbolo de um império que jamais deveria ter existido. Despertou a minha sensibilidade para a ideia de “culpa histórica”: se fará algum sentido, se hoje glorificarmos Camões será uma ratificação do expansionismo de um Portugal que se quis sobrepor aos outros povos, ou apenas o prazer de idealizar que uma Dinamene morreu afogada para que aqueles manuscritos fossem entregues a D. Manuel, e que nos seus hipérbatos e hipérboles, o poeta engrandecesse também esta pequena extensão de terra, que um dia almejou ser maior, como tantas outras.
Como diz o Rui pensando no João Comunista que foi para o Brasil, “espero que (…) já não tenha tanta vergonha do império nem de ser português, deve ser chato viver com vergonha de uma coisa que não se pode mudar.”

No hotel de frente para o mar, “o império estava ali, (...) um império cansado, a precisar de casa e de comida, um império derrotado e humilhado, um império de quem ninguém queria saber.”

“O Sr. Belchior diz que os contentores são as sobras do império, não deixa de ter piada que estejam a apodrecer no mesmo sítio onde o império começou, (…) alguma coisa devemos aprender com isto (...).”


Um império em fragmentação repleto de dicotomias, de retornados que não foram para os hotéis que evitam os retornados dos hotéis, do “Vítor (que) acusa-nos de termos andado a explorar os pretos mas defende os irmãos e os outros soldados que andaram a matá-los”, de três pessoas sentadas numa mesa posta para quatro, onde “o lugar vazio faz as vezes do pai”. De pessoas que se enredam em lembranças de vidas que lhes escaparam, aspiradores, motas, fazendas de perder a vista...

“(...) a mãe diz que tem a certeza que as roseiras morreram de tristeza, que perderam as pétalas uma a uma até ficarem com o coração à mostra.”

E eu só penso que foram estas famílias que perderam aquilo que tinham, dignidade desfolhada aos poucos, até ficarem com o coração à mostra nestas folhas, à flor da pele. E “a metrópole é velha e já não tem um pedaço de terra selvagem onde a mãe possa inventar um coração.”

“(...) se um homem se põe a pensar a sério em tudo o que aconteceu acaba por dar um tiro nos cornos.”
Ponho-me a pensar, quantos não deram?

Outros, no entanto, voltam. “Ninguém volta da morte mas o pai está à porta do nosso quarto.” E o silêncio dele “(...) faz com que as cicatrizes contem coisas mais terríveis do que o pai poderia alguma vez contar.” Não se fala do que aconteceu, “(...) mas é como se isso sugasse todas as conversas. Todas as conversas e todos os silêncios.”

O pai do Rui voltou e encontrou-os naquele quarto que podia ser uma casa. Outros nunca chegaram. Muitos, na maior ponte aérea até então feita, regressaram para um local de onde conheciam apenas histórias, estranhos numa terra menos sua que aquela que perderam numa batalha onde a linha separando as trincheiras se esfumara muito antes.

Gostei de espreitar por esta janela, de encontrar pela frente uma história nua que agora vou vestindo com os véus da História e de tantas outras estórias. Gostei de conhecer este Rui que representa tantos mais. Fechei o livro, e no baque da sua capa dura senti que penetrara, mesmo que por instantes, na carapaça de uma ferida que ainda lateja no peito de um povo.

E o avião risca o céu a direito, partimos para outros vôos.


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