domingo, 23 de junho de 2019

Primeiro Parágrafo: As Meninas-Prodígio


"Tudo começa quando me convidam para ver um parto. Uma mulher que praticamente não conheço deixa-me vê-la a deitar ao mundo a sua segunda filha. Todos deveríamos ver partos, penso eu. Quero escrever um artigo sobre o assunto. Quero derrubar esses falsos mitos do nascimento asséptico com uma mãe lindíssima a pegar num bebé redondo e perfeito ao colo. Tenho trinta e um anos. Nunca pari e não sei se o quero fazer, ainda assim quero vê-lo. Nasci no sistema capitalista. Quero ter tudo, ver tudo, viver tudo. Não posso perder nada."

in As Meninas-Prodígio, Sabina Urraca. Publicado na colecção Confluências, da Kalandraka Editora Portugal

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Eu poético: Desencontro

DESENCONTRO

1. Pedro

Podíamos ter sido a história um do outro,
no dia que te vi em Alfama.
Naquela rua estreita que eu subia
e tu descias tão delicada,
os nossos olhares cruzaram,
rasgando no meu rosto
um sorriso tímido,
que disfarçava as bochechas coradas que levava
e que tu cravaste fixamente.
Passei a teu lado,
senti o travo intenso do teu cheiro
e olhei para trás para perceber
se o teu passo era firme,
delicado ou oscilante.
Por breves segundos parei,
senti um nó na voz
que me impediu de te chamar.
O coração pediu que descesse,
me ajoelhasse ali mesmo,
e te prometesse o próximo jantar.

----- desencontro -----

2. Cinderela

Naquele dia, vinha da feira da ladra,
cruzei as portas do sol e segui.
Vi um rapaz ao longe,
distraído com o canário que assobiava na janela de uma casa.
Ele olhou-me de cima a baixo, mas não disse nada.
Por momentos matutei um plano,
pedir-lhe indicações,
mas ele não pareceu com vontade
de suspender o pensamento.
Foi por ali,
num passo trapalhão e descompassado.
Fiquei a pensar naquela desarmonia de vontades,
sonhei que ele tropeçasse numa pedra
e eu fosse em seu socorro.
A razão pediu para voltar atrás
e gritar bem alto que queria ir ver a lua reflectida no Tejo,
mas a minha alma impediu.
Sinto-me só,
precisava apenas de uma mão
que me desse força até casa.

(o desencontro é estatisticamente o maior delinquente do mundo)

Rodrigo Ferrão

Foto: Rodrigo Ferrão

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

canta cancioneiro da bahia




- ilustração de Taisa Borges -



A estrela, quando corre,
Deixa um caminho no céu;
O rapaz, quando namora,
Leva jeito no chapéu.

As estrelas do céu correm
Todas numa carreirinha;
Assim correm os amores
Da tua beira pra minha.

Lá no céu tem sete estrelas,
Todas sete emparelhadas.
Uma é minha, outra é de vós,
 Outra de minha mãe amada.

No céu há dezoito estrelas
Todas postas numa linha;
Quis Deus escrever com elas:
“Eu sou teu e tu és minha”.


- Marco Haurélio - 




Nota do Autor: A literatura oral fascina pela originalidade e pela universalidade. E nisso não há qualquer contradição. A primeira e a terceira quadras acima reproduzidas são de minha recolha do cancioneiro baiano, que redundou no livro Lá detrás daquela serra (Peirópolis,2013). A segunda e a quarta integram o Cancioneiro de Viana do Castelo, de Afonso do Paço (Braga, Livraria Cruz e Cia.,1928). Notem-se, em que pesem as similaridades, as diferenças sutis. Na terceira, por exemplo, a referência ao Setestrelo (Plêiades) dispensa maiores explicações. Na quarta, as 18 estrelas equivalem a cada letra da frase do verso final.

Visite o blog Cordel Atemporal


Image result for marco haurelio retrato xilogravura* Baiano de Riacho de Santana, Marco Haurélio é poeta popular, editor e folclorista. Em cordel, tem vários títulos editados, dentre os quais: Presepadas de Chicó e Astúcias de João GriloHistória da Moura Torta e Os Três Conselhos Sagrados(Luzeiro). É autor, também, dos livros infantis A Lenda do Saci-Pererê e Traquinagens de João Grilo (Paulus); O Príncipe que Via defeito em Tudo (Acatu). Escreveu ainda Lendas do Folclore Capixaba (Nova Alexandria), As Babuchas de Abu Kasem (Conhecimento), A Megera Domada (recriado em cordel a partir do original de William Shakespeare) e O Conde de Monte Cristo (versão poética do romance de Alexandre Dumas), os dois últimos para a coleção Clássicos em Cordel, da Nova Alexandria, onde atuou como editor.

Recentemente lançou História de combates, amores e aventuras do cavaleiro Palmeirim de Inglaterra (com José santos e Jô Oliveira), pelo Editora FTD, A lenda do Batatão(SESI-SP), A História dos dois homens que sonharam(Giramundo), Peripécias da raposa no Reino da Bicharada(LeYa), A saga de Beowulf (Aquariana), Os 12 Trabalhos de Hércules (Cortez) e Mateus, esse boi é seu(DCL).

Com base numa recolha feita no sertão baiano, em 2005, organizou as antologias Contos Folclóricos Brasileiros (publicada em 2010 pela Paulus Editora), Contos e Fábulas do Brasil (Nova Alexandria) e O príncipe Teiú e outros contos brasileiros (DeLeitura). No campo da pesquisa em poesia popular, escreveu Breve História da Literatura de Cordel (Ed. Claridade), que integra a coleção Saber de Tudo, eLiteratura de Cordel - do sertão à sala de aula (Paulus). Profere palestras e ministra oficinas sobre Cordel e Folclore em vários estados brasileiros. No momento, atua como consultor da telenovela Velho Chico (Rede Globo), de Edmara Barbosa e Bruno Barbosa, que irá ao ar em agosto de 2016. 





quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

sem medo do mar

não tenha medo, não
da onda grande do mar
é mergulhar bem fundo
na hora que chegar

- Arícia Mess -



* Arícia é de Niterói, Rio de Janeiro, mas reside em Sampa. Desde os anos 90, a artista eleva nossa percepção melódica com a mistura alquímica de ritmos da música negra do mundo com os sons afro-brasileiros. Sem medo do mar é uma canção mantra de sua autoria.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

pec do pet




meu cão agora é pejota
eu não compro mais ração
dou um real, quero nota
até da vacinação.
o meu gato traz marmita
hamster, só com emibiei
sem horário de visita
nos novos termos da lei.
uma moeda pro peixinho
dentro do aquário joguei
e nem troco a água mais.
até mesmo meu porquinho
da índia terceirizei
sem direitos sociais.

- Marcílio Godoi - 

Nenhum texto alternativo automático disponível.

Marcílio Godoi é mestre em Crítica Literária e Literatura Brasileira pela PUC-SP (2013). É jornalista diplomado pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo (2003). Possui diploma também em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais (1988). Estudou na Escola Guignard - UEMG em Belo Horizonte. É colaborador mensal na Revista Língua Portuguesa desde 2007. É professor semestral convidado do GV PEC Comunicação Corporativa - FGV – SP,  desde 2008. Publicou, entre outras obras, São Paulo Cidade Invisível, Uma Reportagem Afetiva (Letras e Expressões, 2004); A Pequena Carta, Uma Fábula do Descobrimento do Brasil (Bom Texto, 2002); Ingrid, uma história de exílios, sobre as memórias da Segunda Guerra Mundial (Sagui, 2009); Pequeno Dicionário Ilustrado de Palavras Invenetas, (Sagui, 2007) e A Inacreditável História do Diminuto Senhor Minúsculo (SM Edições, 2013). Venceu o Prêmio Barco a Vapor (Edições SM) em 2012 e o Grande Prêmio Cásper Líbero em 2003. É Diretor de Criação da Memo Editorial, São Paulo.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Para Maria da Graça


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"Agora, que chegaste à idade avançada de quinze anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas. 

Este livro é doido, Maria. Isto é, o sentido dele está em ti. Escuta: se não descobrires um sentido na loucura, acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. 

A realidade, Maria, é louca. 

Nem o papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: “Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?”

Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?” Essa indagação perplexa é o lugar comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrastes essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

A sozinhez (esquece essa palavra feia que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!” O importante é que conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice versa, isto é, fechar uma porta bem aberta. 

Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo. 

Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave. 

A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes ao dia: “Oh, I beg your pardon!”. Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gatos se fosse eu?”. 

Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! Mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não sabe quem venceu. Se tiveres que ir a algum lugar, não te preocupes com a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste. 

Disse o ratinho: “Minha historia é longa e triste!” Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance.” Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só um jeito de contar um vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e mulheres que suspiram e dizem: “Minha vida daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos, irremediáveis, Maria. 

Os milagres acontecem sempre na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrario do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo”. Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente. 

E escuta essa parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo como hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma maquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar em disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor. 

Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado Maria, com as grandes ocasiões. 

Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”. 

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: é feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira da nossa dor, Maria da Graça."

- Paulo Mendes Campos

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

alta noite já se ia

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alta noite já se ia,
ninguém na estrada andava.
no caminho que ninguém caminha,
alta noite já se ia,
ninguém com os pés na água.
nenhuma pessoa sozinha
ia, nenhuma pessoa vinha.
nem a manhãzinha,
nem a madrugada,
alta noite já se ia,
ninguém na estrada andava.
no caminho que ninguém caminha,
alta noite já se ia,
ninguém com os pés na água.
nenhuma pessoa sozinha
ia, nenhuma pessoa vinha.
nem a estrela guia,
nem a estrela d'alva,
alta noite já se ia, ninguém na estrada andava.
no caminho que ninguém caminha,
alta noite já se ia,
ninguém com os pés na água.

- arnaldo antunes -